Crenças Estrangeiras Incorretas sobre Shambhala

15/05/2015 22:02

Muitos mitos estrangeiros cresceram em volta da legenda de Shambhala encontrada na literatura de Kalachakra. Alguns foram espalhados para ganhar apoio militar ou político, tal como a identificação da Rússia, da Mongólia ou do Japão como Shambhala. Outros apareceram dentro de movimentos ocultistas e misturaram idéias budistas com conceitos de outros sistemas de crenças. Vários até organizaram expedições para encontrar a terra legendária.

Dois círculos surgiram entre as versões ocultistas. Um deles considerava Shambhala como um paraíso utópico cujo povo virá salvar o mundo. O escritor britânico, James Hilton, encaixa-se neste círculo. O seu trabalho de1933 Lost Horizon [ Horizonte Perdido], descreve Shangrila como um paraíso espiritual situado num vale inacessível e secreto no Tibete. Shangrila é indubitavelmente uma corrupção romântica de Shambhala. O outro círculo descreveu Shambhala como uma terra de poderes malévolos. Vários relatos do pós-guerra sobre a ligação entre o nazismo e o ocultismo apresentam esta interpretação. É importante não se confundir qualquer uma destas distorções com o próprio budismo. Deixem-nos traçar o fenômeno.

Teosofia

A Madame Helena Blavatsky (1831-1891) nasceu na Ucrânia filha de aristocracia Russa. Dotada com poderes extrasensoriais, viajou pelo mundo em busca de ensinamentos ocultos e secretos, e passou muitos anos no subcontinente indiano. De 1867 a 1870, ela estudou budismo tibetano com mestres indianos, muito provavelmente das regiões culturais tibetanas dos Himalaias indianos, durante a sua suposta estadia no Mosteiro de Tashilhunpo no Tibete.

Blavatsky encontrou o budismo tibetano numa altura em que a erudição europeia oriental estava ainda na sua infância e em que poucas traduções ou narrativas estavam disponíveis. E mais, ela teve a oportunidade de aprender somente fragmentos desconjuntados dos seus vastos ensinamentos. Nas suas cartas privadas, escreveu que como o público ocidental tinha naquela altura pouca familiaridade com o budismo tibetano, ela decidiu traduzir e explicar os termos básicos com conceitos mais popularmente conhecidos do hinduísmo e do ocultismo. Por exemplo, ela traduziu três dos quatro mundos-ilhas (quatro continentes) em volta de Monte Meru como as ilhas perdidas desaparecidas de Hiperbórea, da Lemúria e da Atlântida. Do mesmo modo, apresentou as quatro raças humanóides mencionadas no Abhidharma e nos ensinamentos de Kalachakra (nascidos por meio de transformação, umidade e calor, ovos, e úteros) como as raças destes mundos-ilhas. A sua convicção de que os ensinamentos esotéricos de todas as religiões do mundo formam um corpo de conhecimento oculto reforçou a sua decisão de traduzir desse modo e ela tomou a iniciativa de demonstrar isso nas suas escritas.

Juntamente com o coronel americano espiritualista Henry Steel Olcott, Madame Blavatsky fundou a Sociedade Teosófica em 1875 em Nova Iorque. As suas sedes internacionais mudaram para Madras, na Índia, pouco depois. Quando o seu colega Alfred Percy Sinnett identificou a teosofia com o budismo esotérico em Esoteric Buddhism [ Budismo Esotérico] (1883), Blavatsky refutou a sua alegação. De acordo com as suas Letters of H. P. Blavatsky to A. P. Sinnett [ Cartas de H. P. Blavatsky a A. P. Sinnett], que foram publicadas postumamente, a posição de Blavatsky era que a teosofia transmitia “os ensinamentos ocultos secretos de trans-Himalaia”, e não os ensinamentos do budismo tibetano. Não obstante, através de suas escritas, o oeste veio primeiro a associar Shambhala com o ocultismo e muitos subsequentemente confundiram esta ligação com os verdadeiros ensinamentos do budismo.

Em 1888, Blavatsky mencionou Shambhala na sua obra principal, The Secret Doctrine [ A Doutrina Secreta], os ensinamentos que ela disse ter recebido telepaticamente dos seus professores no Tibete. Ela escreveu numa carta que, embora os seus professores fossem “ byang-tzyoobs” ou “tchang-chubs” (Tib: byang-chub, Sânsc: bodhisattva) reencarnados, ela tinha-os chamado “mahatmas” dado que esse termo era mais conhecido pelos ingleses na Índia.

A origem tibetana dos ensinamentos em The Secret Doctrine [ ADoutrina Secreta], Blavatsky afirmou, é The Stanzas of Dzyan [As Estâncias de Dzyan], o primeiro volume dos comentários aos sete fólios secretos de Kiu-te. “Kiu-te” transcreve “ rgyud-sde” tibetano, que significa “divisão tantra” que é o título da primeira seção do Kangyur, as traduções tibetanas das palavras de Buda. “Dzyan” transcreve o sânscrito “ dhyana” (Jap. zen), significando estabilidade mental. Blavatsky estava ciente que The Kalachakra Tantra [ O Tantra Kalachakra] era o primeiro artigo na divisão tantra do Kangyur, uma vez que ela mencionou esse fato num dos seus apontamentos. No entanto, ela explicou que os sete fólios secretos não faziam realmente parte do Kiu-te publicado, e assim nós não encontramos qualquer coisa similar às Stanzas de Dzyan nessa coleção.

Não está claro até que ponto Blavatsky realmente estudou os textos de Kalachakra diretamente. O primeiro material ocidental sobre o tópico foi um artigo de 1833 entitulado “Note on the Origins of the Kalachakra and Adi-Buddha Systems” [Observações sobre as Origens dos Sistemas de Kalachakra e de Adi-Buddha] pelo pioneiro erudito húngaro Alexander Csomo de Körös (Körösi Csoma Sandor). De Körös compilou o primeiro dicionário e gramática tibetana numa língua ocidental, o inglês, em 1834.O Tibetan-Russian Dictionary and Grammar [ Dicionário e Gramática Tibetano-Russa ], de Jakov Schmidt depressa seguiu em 1839. A maioria do conhecimento de Blavatsky sobre o Kalachakra, contudo, veio do capítulo intitulado “The Kalachakra System” [O Sistema de Kalachakra] em Buddhism in Tibet [ Budismo no Tibete] (1863), por Emil Schlagintweit, como evidenciado pelo empréstimo de muitas passagens desse livro nas suas obras. Seguindo o seu princípio de tradução, no entanto, ela rendeu Shambhala em termos de conceitos semelhantes ao hinduísmo e ocultismo.

A primeira tradução inglesa de The Vishnu Purana [ O Vishnu Purana], por Horace Hayman Wallace, tinha aparecido em 1864, três anos antes da suposta visita de Blavatsky ao Tibete. De acordo com essa obra, ela explicou Shambhala em termos da apresentação hindu neste texto: é a vila onde o futuro messias, Avatar de Kalki, irá aparecer. Blavatsky escreveu que o Kalki é “ Vishnu, o Messias no Cavalo Branco dos bramanes; o Buda Maitreya dos budistas; Sosiosh dos parsis; e Jesus dos cristãos”. Ela também afirmou que Shankaracharya, o fundador de Advaitya Vedanta do início do século IX, “ainda vive entre a Irmandade de Shamballa, do outro lado dos Himalaias”.

Noutro lugar, ela escreveu que quando Lemúria se afundou, parte do seu povo sobreviveu em Atlântida, enquanto que parte dos seus eleitos migrou para a ilha sagrada de “Shamballah” no deserto de Gobi. No entanto, nem a literatura de Kalachakra nem The Vishnu Purana, mencionam Atlântida, Lemúria, Maitreya ou Sosiosh. Contudo, a associação de Shambhala com eles continuou entre os seguidores de Blavatsky.

A localização de Blavatsky de Shambhala no deserto de Gobi não é surpreendente visto que os mongóis, incluindo a população buryat da Sibéria e os kalmyks da região mais baixa do Volga, eram fortes seguidores do budismo tibetano, particularmente dos seus ensinamentos de Kalachakra. Durante séculos, os mongóis em toda parte acreditaram que a Mongólia é o Reino Nórdico de Shambhala e Blavatsky tinha sem dúvida conhecimento das crenças dos buryat e dos kalmyk na Rússia

Blavatsky também poderia ter recebido confirmação da sua localização de Shambhala no deserto de Gobi [a partir] das escritas de Csoma de Körös. Numa carta de 1825, ele escreveu que Shambhala é como uma Jerusalém budista estendida entre 45 e 50 graus de longitude. Embora ele achasse que Shambhala seria provavelmente encontrada no deserto de Kizilkum no Cazaquistão, o deserto Gobi também caía dentro das duas longitudes. Mais tarde, outros também o situariam dentro destes parâmetros, porém ou no Turquistão Oriental (Xinjiang, Sinkiang) ou nas montanhas de Altai.

Embora a própria Blavatsky nunca afirmasse que Shambhala era a fonte de The Secret Doctrine [ A D outrina Secreta], mais tarde vários teosofistas fizeram esta ligação. Proeminentemente entre eles estava a Alice Bailey em Letters on Occult Meditation [Cartas sobre Medita ção Oculta] (1922). Helena Roerich, nas suas Collected Letters (1935-1936) [ Cartas Coletados (1935-1936)], também escreveu que Blavatsky era uma mensageira da Irmandade Branca de Shambhala. Além disso, ela relatou que em 1934 o Regente de Shambhala tinha chamado de volta ao Tibete os mahatmas que tinham transmitido os ensinamentos secretos a Blavatsky.

Asserção de Dorjiev da Rússia como Shambhala

A primeira principal exploração da legenda de Shambhala para finalidades políticas também envolveu a Rússia. Agvan Dorjiev (1854-1938) era um monge mongol de Buryat que estudou em Lhasa e tornou-se Parceiro Mor de Debates (Tutor Assistente) do XIII Dalai Lama. Face às maquinações britânicas e chinesas para controle do Tibete, ele convenceu o Dalai Lama a virar-se para a Rússia para apoio militar. De acordo com a Ekai Kawaguchi emThree Years in Tibet [ Três Anos no Tibet], fê-lo dizendo-lhe que a Rússia era Shambhala e que o Czar Nicholas II era a reencarnação de Tsongkhapa, o fundador da tradição Gelug. Dorjiev foi em diversas missões à Corte Imperial Russa, mas nunca conseguiu obter qualquer ajuda. No entanto, conseguiu convencer o Czar a construir um templo budista em São Petersburgo.

A primeira cerimônia pública no templo teve lugar em 1913. Foi um ritual para a longa vida da Dinastia dos Romanov no aniversário do seu tricentenário. De acordo com Albert Grünwedel, o explorador alemão da Ásia central, em Der Weg nach Shambhala [ O Caminho para Shambala] (1915), Dorjiev falou da Dinastia dos Romanov como os descendentes dos regentes de Shambhala.

 

Mongólia, Japão e Shambhala

A exploração política seguinte da legenda de Shambhala ocorreu na Mongólia. O Barão von Ungern-Sternberg, um alemão que viveu na Rússia, era um fervoroso anti-Bolchevique. Durante a Guerra Civil que se seguiu à Revolução Russa de 1917, ele lutou na Sibéria com as forças brancas (czaristas) Russas. Ele invadiu a Mongólia Exterior em 1920 com sucesso para libertá-la dos chineses. Famoso pela sua crueldade, Ungern massacrou milhares de chineses, mongóis colaboradores, bolcheviques russos e judeus, ganhando o nome de “Barão Louco”. Ungern acreditava que todos os judeus eram bolcheviques.

Sukhe Batur estabeleceu o Governo Comunista Mongol Provisório em Buryatia e conduziu um exército mongol contra Ungern. Ele mobilizou as suas tropas dizendo-lhes que, lutando para libertar a Mongólia de opressão, eles iriam renascer no exército de Shambhala. Com a ajuda do Exército Vermelho Soviético, Sukhe Batur invadiu Urga (Ulaan Baatar), a capital Mongol, no fim de 1921. A República Popular da Mongólia foi fundada em 1924.

Depois da invasão japonesa da Mongólia Interior em 1937, o Japão também explorou a legenda de Shambhala para proveito político. Para tentar obter a lealdade dos mongóis, espalhou a propaganda que o Japão era Shambhala.

Alexander Berzin
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